sábado, 7 de junho de 2014

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte II)

Continuação do post anterior, do livro de Basil Tatakis Christian Philosophy in the Patristic and Byzantine Tradition

1) Os comentadores bizantinos de Aristóteles --> É agora tempo para nós de retornarmos a Bizâncio e inicialmente dizer poucas palavras sobre os comentadores bizantinos de Aristóteles. O mais importante entre os antigos comentadores é João Philoponus, cujo trabalho foi continuado pelos seus estudantes Estevão de Alexandria, David o Armênio e Elias. Eles seguiram a tradição que foi estabelecida pelos filósofos neoplatônicos e os comentadores da escola filosófica de Alexandria, que se aproximou muito do espírito Cristão, deixando de lado os interesses ontológicos e se voltando principalmente para as ciências, em especial às matemáticas. Assim, nós podemos explicar, como veremos, porque Philoponus se converteu ao cristianismo.
Após os discípulos de Philoponus, a tradição de comentadores de Aristóteles em Bizâncio chegou ao fim após três séculos. Estes foram os séculos durante os quais o pensamento bizantino voltou-se quase exclusivamente para questões teológicas. Com Psellos no século XI, uma grande linha de comentadores reemergiu quase próximo a Scholarios, o primeiro patriarca da ocupação turca, que foi também um importante comentador de Aristóteles. Além de Psellos e Scholarios, outros importantes comentadores nesta linha são João Ítalos, Eustratios de Nicéia, Nicéforo Blemmides e Teodoro Metochites. Com seus trabalhos, estes comentadores significativamente avançaram o estudo e entendimento do Estagirita.
Em 1882 a Academia de Berlim começou a publicar todos os trabalhos dos comentadores de Aristóteles, em uma ordenação impressionante de largo volume, os quais estão sendo publicados até agora,o que, no entanto, não esgota todos os comentários a Aristóteles. Mas esta edição constitui um trabalho monumental. Ela esconde em suas páginas um labor de 15 séculos, uma inimaginável riqueza de perspectivas, nuances, pesquisas, problemas, os quais, como dissemos, não olham apenas para a descoberta do correto entendimento de Aristóteles, mas também pela busca do que é certo em si mesmo.
Nós agora passaremos para alguns expoentes representativos da filosofia bizantina e procuraremos neles os elementos que expressam o significado, que Platão e Aristóteles lhes havia dado, assim como o movimento filosófico original que começara com eles.

2) João Philoponus, O Gramático --> Nossa primeira parada para aquele que nos referimos a pouco, a saber, João Philoponus, o Gramático (século VI), um homem sábio, um pagão de Alexandria, um discípulo de Amônio Hermias (o conhecido comentador do Organon de Aristóteles e discípulo de Proclus) que se converteu ao cristianismo.
Philoponus foi um homem com intenso interesse científico e continuou sua investigação e estudo ao longo de sua vida. Muitas de suas visões sobre física e especialmente sua teoria do movimento foram adotados após muitos séculos no Ocidente e causaram grande rebuliço no tempo da Renascença. Assim, alguns de seus trabalhos que se referiam às ciências positivas (geografia, física, etc) foram livros textos em Bizâncio, mas também no Ocidente no século XVIII. Ao mesmo tempo, os Neoplatônicos após Plotino, como Proclus e Jâmblico, aceitaram em suas vidas toda forma de magia e de médiuns. Eles se viam mais como sacerdotes devotos, teólogos, do que como filósofos. Pareceu que esta atmosfera pagã aborreceu Philoponus, convertendo-o ao cristianismo. Isto quer dizer que a Cristandade lhe ofereceu um fundamento mais firme tanto para o pensamento filosófico quanto para o científico. Em outras palavras, isto provavelmente quis significar que as posições metafísicas da Cristandade lhe ofereceram um Universo que lhe respondia mais adequadamente às demandas do pensamento racional. Estas coisas pressupõe, claro, que Philoponus, como Cristão, sentiu-se livre para buscar entender a conexão racional que é para ser encontrada ma esfera inerente do pensamento sensível.
Estas visões, que são de grande interesse para nós, são principalmente encontradas em dois grandes livros que são ao mesmo tempo tanto filosóficos quanto teológicos, Sobre a eternidade do Mundo e sobre A Criação do Mundo. O primeiro constitui uma refutação muito importante das visões de Proclus, que apresentara como argumentos a posição pagã da filosofia. Nós apreciamos neste trabalho o livre movimento da razão que retira seus argumentos da região da ciência e não da teologia. Aqui, ouvimos falando o sábio físico. Com profundidade, porém, vemos que ele é guiado pela fé no relato do Gênesis do Antigo Testamento, ainda que ele deseje que seus argumentos sejam científicos e sejam livremente derivados do que parece ser geralmente aceitável e racional. O segundo trabalho desenvolve a posição cristã acerca da criação do mundo.

3) O entendimento cristão de Philoponos acerca da Criação- Nós nos restringiremos a poucos argumentos característicos de Philoponos. Se o mundo fosse eterno, ele diz, então o infinito seria em ato, estaríamos em condições de dar um número a ele, o que é impossível. Isto significa que a eternidade do mundo é uma tese impossível. Novamente, ele não concorda com Proclus que toda forma de energia, e disso a criação, pode ser reconhecida como um movimento. A criação ocorre apenas pela vontade de Deus, a qual não precisa nem de tempo ou dimensão para ser expressa. Com a criação, vista neste sentido, apenas a operação espiritual, diz Philoponus, lhe é necessária, já que a última é sem tempo e não pode ser entendida como um movimento. Esta é uma distinção muito significante, que nos remove da dominação das visões naturalistas da cosmologia. A criação, obviamente, ocorre no tempo e assim o próprio tempo tem um começo.
Isto, porém, não significa que o que quer que aconteça no tempo tem seu ser imerso em um eterno devir. O triângulo toma seu início em uma certa alma - diremos a alma de Platão- mas ele não é alterado por conta disso. Ele permanece um triângulo eterno e seus três ângulos terão uma soma eterna de dois ângulos retos. Logo, não é certo que o que quer que comece no tempo é por esta razão sujeito a uma transformação incessante e mudança. Novamente, não é certo que o que quer que comece necessite algum tipo de matéria de modo a vir a ser, ou o que é necessário vir a ser de um ser pre-existente, de acordo com um princípio aristotélico de que homem gera homem, pois é possível que algo seja criado do nada. De modo similar, não é possível para a matéria existir sem um eidos, sendo sem uma qualidade, como defende a metafísica aristotélica. Em reconhecimento da alma, sua essência não é um princípio de movimento, como alega Aristóteles. O sol ilumina por sua própria natureza à medida em que manifesta, e ele projeta calor ainda que não haja vontade para isto. Nós devemos usar pensamentos similares no que concerne à alma racional, já que o que quer que aconteça, ela causa, por sua própria natureza, vida e movimento sem que necessite vontade.
Todas estas posições opostas a Philoponus são posições aristotélicas cruciais. Suas refutações alteram uma mui consistente aplicação do princípio metodológico aristotélico, que busca a cada substrato e ser sua qualidade própria. Assim Philoponus consegue escapar das garras da psicofísica de Aristóteles, que muitas vezes sujeita os fenômenos físicos e a própria alma às categorias naturais que os definem como "uma primeira enteléquia de um corpo natural que tem a possibilidade de vida" e permanece crente ao dualismo Cristão, que se expressou pela primeira vez em Platão. Retornando, em seu segundo trabalho, com relação à alma, Philoponus defende que sua substância incorpórea é introduzida no corpo humano de fora, no momento em que o corpo é formado. Deus, ele diz, abençoou o homem assim que o fez. A entrada da alma no corpo, ele conclui, não é uma privação, como Platão pensou. Aqui vemos a Cristandade falando, já que ele vê com olhos otimistas o destino do homem. O homem, ele diz, quando ganha a consciência de sua espiritualidade, torna-se ao mesmo tempo capaz de elevar a si mesmo a Deus com seu espírito e com sua alma purificada.

4) Os pensamentos de Philoponus e Aristóteles -- Ainda que muito frequentemente em suas investigações científicas ele nos lembre Aristóteles, no sentido em que ele investiga os problemas e na metodologia que ele emprega para fazer isso, Philoponus afasta-se novamente de Aristóteles em pontos cruciais. Aristóteles defende que é possível para a mente compreender as causas, isto é, os primeiros princípios dos entes. Isto acontece quando do efeito somos elevados às causas e continuamos este processo até que cheguemos à causa primeira. Com este processo, nós também chegamos a conhecer e explicar os entes, de acordo com Aristóteles, porque ele aceita contrariamente à moderna teoria evolucionista, que o maior explica o inferior. Nesta questão crucial, Philoponus discorda radicalmente de Aristóteles. Não há caminho, ele diz, que conduza do efeito para a causa ou do fenômeno para aquilo que é. Não é dado ao homem determinar as causas e consequentemente nós conhecemos muito pouco sobre elas. Nós apenas acreditamos que as coisas foram bem ordenadas e bem criadas por Deus.
Em outras palavras, Philoponus não aceita que o conhecimento humano exaure o objeto ou que seja capaz de sozinho nos conduzir aos primeiros princípios, isto é a Deus, como defende a filosofia grega. O conhecimento humano permanece, para Philoponus, na superfície dos entes; ele não move da aparência à realidade. Este processo da aparência à realidade é possível apenas com certos dogmas que nos são dados por revelação. Quando nosso espírito conscientemente adota estes dogmas, então ele comunica em um sentido com algo que está além do que é meramente sensível.
De forma breve expusemos, pelo dito acima, a postura filosófica de Philoponus. Ele é um aristotélico ou um platônico? A resposta correta é simplesmente dizer: ele é um cristão. geralmente, porém, os estudiosos reconhecem Philoponus como um aristotélico. Alguns chegaram ao ponto de afirmar que com sua autoridade, Philoponus contribuiu para a exclusiva adoção de Aristóteles como mestre do pensamento Bizantino. Em outras palavras, ele teria feito pelo Leste o que Tomás de Aquino fez pelo Oeste. Mas veremos se isto é de fato o caso. Em sua refutação de Proclus, mostramos que Philoponus sabe igualmente bem tanto Platão quanto Aristóteles. Ele repetidamente mostra que Proclus equivocou-se ou, intencionalmente, distorceu ideias que às vezes vinham de Platão e outas vezes de Aristóteles. Mas algo que revela a boa compreensão que ele teve do pensamento destes dois gigantes filosóficos está no fato dele insistir contra os Neoplatônicos nas diferenças que os separam. Se ele frequentemente defendeu posições aristotélicas, foi mais comum ainda a rejeição de outras posturas aristotélicas. Mas ele muitas vezes também refutou Platão. Nas ideias platônicas, ele vê os pensamentos criativos de Deus, os arquétipos das coisas sensíveis, não as coisas que são realmente reais, que são separadas do Deus criador, como Platão pensa. A conclusão é que Philoponus frequentemente refuta tanto Platão e Aristóteles, mas também ele frequentemente se refere a ambos quando ele crê que possam estar certos em alguma coisa. "Você deve ver as coisas em si mesmas", ele diz a Proclus, "e não apenas as hipóteses de Platão". Esta é uma afirmação de peso que mostra que ele quer ser independente dos filósofos.
Como um sábio investigador, ou como um espírito que deseja sistematizar, ele adota a lógica aristotélica, o sentido de analisar problemas e o método de investigação que é seguido por Aristóteles; ele frequentemente aceita mesmo a física de Aristóteles. Este é seu aristotelismo. Mas contanto que seu próprio pensamento se mova para o alto e o force a ir além das coisas sensíveis e, na medida em que ele faça isso, ele se anima por alguma outra inspiração. Para poder expressar filosoficamente a verdade que é derivada da revelação, i. e. as verdades que são concernentes a Deus, à alma, á criação do mundo, ele encontra mais elementos em Platão e nos Neoplatônicos. Muitas vezes, ele diz que Platão imita Moisés, mas ele nunca diz isso de Aristóteles.


5) O aristotelismo cristão dos bizantinos- É óbvio, então, que o aristotelismo de Philoponus é restrito apenas à forma, ao vestuário do pensamento, ou a seu rearranjo para as verdades científicas e não para a metafísica da substância. Este é, de fato, o aristotelismo de muitos bizantinos. É com tais reservas, que poderemos ver a originalidade e a independência do pensamento dos bizantinos e que  podemos aceitar a afirmação de que Philoponus seja o fundador do cristianismo aristotélico.
Quase ao mesmo tempo, outro grande espírito, sobre o qual nós falamos anteriormente, Leôncios Bizantios (morto em 543), apresenta mais claramente os elementos do aristotelismo cristão. O aristotelismo lógico, as noções as quais ele adapta da metafísica cristã, permite-o analisar em detalhes e com clareza noções teológicas. Este trabalho o coloca no topo da filosofia escolástica bizantina, a qual tenta por argumentos lógicos e um procedimento científico expressar verdades cristãs.
O apogeu do Escolasticismo Bizantino, no sentido que nós temos atribuído a ele, é alcançado no oitavo século com João Damasceno (d. 749), mais do que 3 séculos antes de um movimento análogo no Ocidente. Em todo ele, encontramos a posição que Philoponus abraçou com relação a Platão e Aristóteles.
Nesta matéria particular, há uma diferença básica entre o Leste Grego e o Oeste. No primeiro, os elementos aristotélicos vêm ser adicionados à tradição filosófica que é rica no platonismo. Isto está ausente em larga medida no último. Esta é a razão de porquê no Ocidente nós virmos uma completa dominação de Aristóteles, que expressa uma posição puramente racionalista do espírito. A posição dos bizantinos, ao contrário, tem a forma que encontramos em profundidade da Ortodoxia e constitui uma síntese de racionalismo e misticismo ou contemplação, onde o racionalismo é usado por Aristóteles e o misticismo ou contemplação por Platão. Este é, de fato, o novo significado que Bizâncio dá a estes dois grandes filósofos, um significado que naturalmente não corresponde à realidade histórica. Esta é a razão de porquê nem Aristóteles ser tipicamente racionalista nem Platão ser um típico representante do misticismo.
Nós agora nos moveremos a outros que completarão nosso assunto com outros elementos interessantes ou darão uma nova forma.

6) Fócio e seu programa educacional - Durante o nono século a vida espiritual de Bizâncio é dominada pela grande personalidade de Fócio (820-891). Ele é o sábio por excelência. Sua agudeza é admirável, tanto quanto sua independência e certeza de seus julgamentos, a qual se refere a uma variedade surpreendente de assuntos e ramos científicos. Seus julgamentos, sendo sempre o fruto de cuidadosos estudos, nos concede o que é a essência das questões em poucas palavras. Para estas virtudes pessoais, Fócio é o único bizantino que pode ser comparado a Aristóteles. Ele é, como este último, um verdadeiro homem de saber universal. Nascido para ser professor, ele se dedicou com todo o seu coração em conduzir a juventude sedenta de conhecimento. Sua casa foi por muito tempo, mesmo quando ele era um Patriarca, um lugar real de estudo e leitura, onde a juventude se reunia e aprendia. Seu famoso trabalho, Myriobiblos, ou Biblioteca, que contém uma análise e afirmação de 281 trabalhos de sabedoria eclesial e secular, que eram lidos, principalmente, durante estas reuniões, testemunham o esforço educacional de Fócio. Muitos dos trabalhos que são analisados aqui não mais sobreviveram.
A posição espiritual de Fócio é caracterizada pela sua forte relação com a Antiguidade. Pela primeira vez desde o século VI, uma nova reviravolta é dada com Fócio para as questões Gregas, uma nova tentativa de estabelecer uma ligação mais estreita entre a sabedoria secular e a teologia. Com Fócio chegamos a algo a mais, para um novo elemento da vida espiritual de Bizâncio. Fócio exibe um interesse vívido pela filosofia em si mesma. Ele não a vê apenas como serva da teologia. Este interesse o conduziu a incluir nos Myriobiblos ardentes palavras em relação a Enesidemo, uma súmula das quais ele nos oferece aquelas que são a única fonte para este filósofo cético. Assumindo certas reservas, diz Fócio, os trabalhos de Enesidemo são úteis àqueles que se aplicam aos estudos dialéticos.

7) Fócio e o conflito entre Nominalismo e Realismo- A despeito de sua independência de espírito, Fócio, obviamente, não cessa de ser representativo desta época. Como transparece dos seus trabalhos filosóficos que sobreviveram (muitos deles foram perdidos), o que parece ser seu interesse primário parece ser a dialética e a lógica, que, como ele diz, são sempre fundadas nos espaços da teologia.Nós devemos encerrar em um ponto, que parece ser de grande interesse para a história da filosofia. É geralmente aceite que realismo e nominalismo nasceram e se desenvolveram na filosofia ocidental escolástica. Estes temas, de fato, dividiram os escolásticos em dois campos opostos e os conduziram a vívidas justaposições de opiniões e movimentos. De acordo com o realismo, como é bem sabido, as mais altas espécies existem independentemente dos seres particulares com os quais parecem. Nominalismo estabelece contra esta visão, a ideia de que elas seriam meramente símbolos, ou palavras. A filosofia de Fócio prova ser errônea a visão de que esta discussão nasceu no Ocidente, e que ele foi um problema recorrente e acalorado já naquela época. Falando sobre as espécies (genos) e os tipos (eidos), Fócio condena os seguidores das duas posições contrastantes, indicando suas inadequações e projetando uma solução que lhe é inteiramente própria. Espécies e tipos são corpóreas, mas não são corpos. Elas denotam a essência dos sujeitos, mas não causam sua constituição. Elas são nomes, noções apropriadas para denotar a existência específica dos sujeitos e não falta nada que não seja dados aos seres, uma vez que possuam sua essência, e que de tais coisas necessitem.
Por esta razão, Fócio rejeita as ideias platônicas. A preexistência das ideias arquetípicas especifica um criador desprovido de poder, um mero técnico. Então, não há razão real para atribuir a estas ideias arquetípicas que não são cambiantes e mutáveis na mente de Deus com seres que estão em um permanente estado de vir a ser. Fócio, ao rejeitar este duplo realismo, de Platão e dos realistas, é capaz de, por um lado, preservar intacta a onipotência de Deus e a distância entre o Criador e a criatura e, por outro lado, fazer uma síntese entre o nominalismo e o realismo. Espécies e tipos existem, eles são corpóreos, mas não são corpos.

8) A preferência de Fócio por Aristóteles. Parece, do que dissemos, que Fócio tinha preferência por Aristóteles. Ele diz que sua filosofia é mais divina, pois está baseada na necessidade de ser racional e no esforço em ser metódico. Este julgamento nos dá Fócio por inteiro. A um espírito racional, mesmo que racionalista, é natural que deva se voltar a Aristóteles, o professor e informante da técnica lógica. E é este o caso geralmente em Bizâncio. Aqueles que possuem uma tendência racionalista retornarão a Aristóteles. Isto ocorre, naturalmente, não porque o pensamento de Platão não siga um procedimento logicamente necessário, mas porque Platão é mal interpretado. Eles são enganados pelas formas literárias de suas obras, especialmente os mitos contidos nelas. Estes mitos os impedem de ver o pensamento platônico em sua profundidade. Assim Fócio, uma mente prática, não faz concessões à linguagem poética de Platão, o qual ele vê primariamente como um filósofo de mitos, do Timeu, o Platão dos Neoplatônicos. Este é o Platão que nós vemos em toda a extensão da Idade Média. Mesmo na Idade Moderna foi consideravelmente tardio um conhecimento objetivamente satisfatório de Platão.

9) O retorno de Platão no século XI. A filosofia será vista com muito maior independência do que aquela de Fócio no século XI por Psellos e seu discípulo João Ítalos, mas não através de Aristóteles, mas através de Platão. Este é o significado que Platão começará a adquirir em Bizâncio. Ele tornou-se o principal representante da filosofia. Pouco a pouco, um desejo pelo platonismo foi despontando de forma autônoma e independente em seu pensamento.  No final com Platão, o pensador platônico parecerá ser o maior inimigo da cristandade. Por outro lado, o pensamento aristotélico nunca adquirirá tal significado. O pensamento aristotélico sempre parecerá aquele que herda argumentos racionais de Aristóteles para melhor estabelecimento da cristandade. Este é o estranho desenvolvimento que observamos. Platão, a quem o filósofo anticristão Nietzsche chama de subcristão é visto então depois como um inimigo irreconciliável da cristandade e o principal representante do espírito pagão grego, exatamente da mesma maneira que foram vistos Plutarco e Plotino. Aristóteles também é visto como alheio à cristandade. Aristóteles fornece as armas da lógica e oferece as interpretações dos fenômenos naturais, enquanto Platão fornece as coisas que jazem para além dos sentidos com muitas soluções muito diferentes daquelas dadas pelos cristãos e, com as perspectivas que ele inaugura, conduz a mente a um livre movimento. Em qualquer caso, é fato que durante os últimos anos de Bizâncio, o apelo a Platão é feito apenas por aqueles que desejam quebrar a síntese elaborada entre fé e conhecimento realizada pelos primeiros pais.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte I)

O texto abaixo dará sequência a um texto de quatro partes, acerca da influência do Platonismo e do Aristotelismo em Bizâncio. O texto abaixo é uma tradução do capítulo XIV do magistral livro Christian Philosophy in the Patristic and Byzantine Tradition de Basil Tatakis, cuja tradução foi feita do grego para o inglês por George Dion, que também editou o livro em 2007 (págs 1 a 14). Estou aqui oferecendo uma tradução do texto em inglês, ou seja, uma tradução de uma tradução e espero que isto não se ofereça como um malefício para os leitores em língua portuguesa e sim como um meio de divulgação de ideias, propósito implícito a este mundo cibernético.
Conhecer a influência do aristotelismo e do platonismo no cristianismo bizantino nos permitirá compreender como se deu este intercâmbio entre a Filosofia Grega e o pensamento Cristão e de que modo também o cristianismo não pode não ser compreendido sem termos em conta esse encontro entre Atenas, Roma e Jerusalém.

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte I)

1) Introdução.
A influência da filosofia Platônica e Aristotélica na formação do cristianismo, e especialmente no Pensamento Bizantino, foi muito considerável. De fato, foi tão grande que os historiadores da filosofia viram completamente o todo do período Bizantino e ainda hoje o vêem, simplesmente como um intercâmbio de elementos Aristotélicos e Platônicos desprovidos de qualquer interesse especial. Eu acredito que a  investigação que temos até agora em certa medida demonstrou que o elemento essencial no pensamento cristão e bizantino não é esta ou aquela influência, ou posição neles contida, mas sua nova orientação, sua nova metafísica. Nós observamos isto em capítulos prévios, onde nós discutimos "o problema da predestinação e a auto-determinação". Neste novo capítulo, vamos investigar um pouco mais de perto o significado que a filosofia de Platão e Aristóteles tinha para os Bizantinos, incluindo o movimento filosófico que foi causado por eles e a originalidade que este movimento apresenta.
Antes de tudo, nós necessitamos aclarar o contexto histórico. Platão e Aristóteles sempre foram familiares para os cristãos do Oriente Grego, especialmente o primeiro, e eles foram se tornando cada vez mais familiares com o passar do tempo. Isso durou por todo o período Bizantino. Sua entrada no pensamento bizantino ocorreu em dois sentidos, indiretamente e diretamente. Ele ocorreu indiretamente através do Neoplatonismo, e diretamente a partir de muitos textos de filósofos, os quais, ao que parece, os bizantinos nunca deixaram de estudar.

2) O aristotelismo e platonismo do neoplatonismo
Vamos dar uma parada em primeiro lugar no aristotelismo e platonismo do Neoplatonismo. A principal posição de Plotino foi que Platão constituiu a principal raiz e tronco da filosofia. Cremos que uma interpretação de Platão foi suficiente para dar uma resposta a todas as questões e problemas que surgiram na mente. Os pensamentos de Plotino são tecidos em torno desta posição, quando ele tenta responder a perguntas que lhe foram colocadas pelo seu público-alvo e seus discípulos. Ele se volta aos textos platônicos tão frequentemente que sua filosofia aparece em última análise ser um comentário destes textos. Plotino, porém, é  um comentador tão genial que ele cria com sua interpretação uma nova escola filosófica. Para persuadir a todos que Platão foi o filósofo e o tronco da verdadeira filosofia, ele defendeu a visão de que não houve fosso intransponível entre Platão e Aristóteles. Estes dois filósofos complementaram um ao outro, e isto se aplicou especialmente ao último, que foi um complemento necessário ao primeiro.
Esta posição permitiu Plotino mover-se com facilidade entre os dois grandes filósofos, voltar-se para a visão de ambos e tentar construir uma síntese harmônica de suas filosofias, deixando de lado suas diferenças essenciais. O fato, é claro, é que há diferenças em essência e no método entre estes dois filósofos, mesmo que ambos sejam representantes do idealismo.

3) Neoplatonismo e Cristandade- Como sabemos, o neoplatonismo manteve-se como um firme inimigo da Cristandade. Seu principal objetivo foi satisfazer as inquietudes de seu tempo, voltando-se, porém, para a mais genuína artéria Grega, como acreditou-se, que era para ser encontrada em Platão. Foi uma inquietude análoga, ou a mesma, que os pensadores cristãos buscaram satisfazer. De fato, como vimos, quando falamos sobre Justino e Agostinho, o cristianismo pensou ter trado dela de uma maneira muito eficaz. Isto baseou-se no fato de que a Cristandade não era uma mera teoria, um problema teorético, mas uma fé e ato por meio dos quais poder-se-ia alcançar uma verdadeira e completa conversão de alma.
O fato de que tanto o Neoplatonismo quanto a Cristandade terem se voltado para uma inquietude análoga cria uma afinidade entre eles, a despeito de sua hostilidade e antítese. Embora os seus olhos permanecessem sempre atentos com relação à raiz pagã e anti-Cristã do Neoplatonismo, os Padres Cristãos permitiram que o idealismo Neoplatônico imbuísse seu pensamento. O movimento da alma das coisas sensíveis da matéria para o mundo inteligente, tanto quanto seu retorno da mente e o UNO, foi algo que os moveu e os encantou.

4) O neoplatonista Juliano, o Apóstata, e a Cristandade- Ao mesmo tempo, a Cristandade exerceu uma influência nos neoplatonistas. O grande oponente dos cristãos, o neoplatonista Juliano o apóstata, reconheceu que a Cristandade beneficiou sua atividade filantrópica: "O ateísmo (que é a Cristandade)", ele diz, "cresceu por causa de sua filantropia com relação aos estrangeiros e pelo cuidado que tinham no sepultamento dos mortos" (Juliano Apóstata, Epistles, 847f. in J. Bidez (ed), Le empereur Julien: Oeuvres completes, vol. 1.2, 2nd. ed., Les Belles Lettres, Paris 1960). Por conseguinte, ele recomendava aos pagãos que agissem de um modo similar. Ele escreveu ao sumo sacerdote pagão da Galácia: "Deve-se estabelecer hotéis em toda cidade de modo que os estrangeiros possam gozar de nossa filantropia, não apenas aqueles que pertencem a nós, mas também aqueles outros que podem estar em necessidade de dinheiro". (Ibid. 84.23). "Acima de tudo", ele acrescenta, "você deve cuidar da promoção da filantropia, pois ela incorre em muitos bens e acima de tudo garante o favor dos deuses." (Ibid. 89b24f). Juliano não entendeu que a filantropia dos Cristãos era consequência necessária de sua teologia a qual deu nascimento à formação de um novo homem. Seu texto, porém, é um eloquente testemunho da radiação da Cristandade mesmo entre círculos pagãos.
Lembremo-nos novamente que o pensamento cristão e o pensamento neoplatônico cresceram juntos e foram moldados juntos no mesmo grande centro e caldeirão cultural de Alexandria. Foi lá que Amônio de Sacas, o primeiro neoplatônico, viveu e ensinou e também lá que Plotino tornou-se seu pupilo. Ao mesmo tempo, nós temos em Alexandria a grande atividade da escola catequética com Clemente e Orígenes. O último, especialmente, foi ensinado por certo Amônio que, de acordo com a maioria dos historiadores, foi idêntico a Amônio de Sacas. Todos estes fatos junto ao aparecimento e aceitação das obras de Pseudo Dionísio o Aeropagita, com um notável selo neoplatônico, indicam o papel do neoplatonismo na formação do pensamento cristão. O Neoplatonismo traz consigo, como vimos, tanto Platão quanto Aristóteles. Isso contribuiu para a entrada indireta desses dois filósofos ao cristianismo.

5) Platonismo, aristotelismo e cristandade- Examinaremos agora a entrada direta do Platonismo e do Aristotelismo no pensamento cristão. Quase não há nenhuma trabalho bizantino com conteúdo filosófico ou teológico em que não possamos encontrar não apenas ecos de Platão e Aristóteles, mas também algum tipo de adoção ou criticismo, ou mesmo rejeição de suas posições filosóficas. Sua influência não está restrita apenas ao conteúdo mas inclui também a forma. Os poucos estratos de João Damasceno que nós citamos no capítulo anterior mostram, como c remos, que ele seguiu a articulação da razão aristotélica. Ele quer ser denso e apotegmático, mas também de uma maneira analítica e sistemática. A adoção da forma aristotélica de argumentação e articulação de pensamento é mais clara ainda nos aristotélicos do século XII Miguel de Éfeso, Eustrátio de Nicea, Nicolas de  Methone e outros.

6) Diálogo Platônico Cristão - Ao mesmo tempo, porém, a atração exercida pelos diálogos platônicos foi igualmente grande. Durante o quinto e sexto séculos, nós tivemos muitos diálogos interessantes, baseados no Protótipo dos platônicos, escritos pelos cristãos em defesa das posições cristãs. O mais importante entre eles é o diálogo de Aeneas o de Gaza (sexto século), trazendo o título Teofrastus, ou acerca da imortalidade da alma e da ressurreição do corpo, e o diálogo de seu amigo Zacarias de Gaza, bispo de Mitilene, trazendo o título, Amonius, ou acerca da criação do mundo. Nós vamos nos concentrar por um curto momento na primeira obra, onde sentimos uma presença ininterrupta de Platão. Ela não está destituída de qualquer forma platônica, ou ethos ou fluxo natural de análise.
Há três personagens principais neste diálogo: o egípcio, Teofrasto (que fala sobre Deus) e Euxitheos (aquele que ora a Deus). Teofrasto é o sábio que sabe todas as coisas: "Por anos até agora", ele diz com orgulho, "ninguém me perguntou qualquer coisa que pudesse introduzir qualquer questão nova para mim" [Esta é uma frase que vem do Górgias de Platão]. Assim, o Górgias Platônico ou Euxitheos são descritos imediatamente diante de nossos olhos. Teofrasto imediatamente encontra ocasião para revelar sua sabedoria. Mas vemos que esta sabedoria é inteiramente derivada dos livros, ou, em outras palavras, é livresca. "Veja", ele diz e diz novamente, "o que os velhos mestres me ensinaram!". Esta afirmação está cheia de ironia para com os filósofos contemporâneos pagãos de Aeneas e sábios que, em sua própria opinião, simplesmente se restringem a repetir sempre e mais outras vezes todas as posições dos antigos e são incapazes de ver o que lhes acontece ao redor. Há, de fato, alguma coisa nova que Teofrasto declara como algo desconhecido para ele, que afirma conhecer de tudo, posto que diante de seus olhos, há a verdade cristã. Ele não necessita nada além do que abrir os olhos e vê-la. E isto é de fato o que ocorre no final do diálogo.
Por outro lado, Euxitheos, que representa o autor do diálogo, é suposto ter vindo da terra da Síria, em outras palavras, do lugar da nova luz. Ele quer ir a Atenas para estudar aos pés dos filósofos o problema da sobrevivência da alma.  Em Alexandria, pois esta é a cena do Diálogo, ele se depara com o filósofo ateniense Teofrasto que julga isso ser um sinal de grande fortuna, de oportunidade de iluminação. Euxitheos aparece com a ironia Socrática como uma pessoa ignorante que deseja ser ensinada. De fato, porém, ele é alguém que deseja ensinar aos demais.
Através destes meios simples e sabiamente estudados, Aeneas avança com muitas ideias. Não há nada redundante neste diálogo, nem os nomes, nem o lugar. É na terra do Egito, em Alexandria, onde a batalha acontece entre a sabedoria de alguém que se apresenta como um grande nome (Teofrasto) e a fé de Euxitheos que está sujeita a Deus - o nome Euxitheos aponta para a oração, ou ainda, para a oração incessante que é uma das poucas características que aparecem na vida dos Cristãos.
Mais tarde, nós também encontraremos diálogos filosóficos em Bizâncio, desde o século XI em diante, durante o novo período de revivência dos estudos gregos, especialmente em Gregoras e outros. Durante este período, os autores gregos que são sempre familiares a Bizâncio tornam-se mais e mais populares e exercem uma influência de alto grau na vida espiritual dos bizantinos. Um exemplo característico do amor pelos autores clássicos é fornecido no século XI por João Mauropous, que mais tarde tornou-se bispo de Euchaita, que mais tarde instituiu a festa dos Três Hierarcas e das Letras Gregas. Em uma brilhante hinografia, além de outras habilidades, ele implora a Cristo em um de seus epigramas que tenha piedade de Platão e Plutarco, porque ambos com seu pensamento e alma estavam muito restritos às leis que pregaram.
A influência, porém, do raciocínio platônico é apenas aparente em trabalhos que não estão na forma dialógica, como nos tratados filosóficos de Demétrios Kydonis (século XIV). Quando se lê seu tratado sobre o dictum "o temor à morte é irracional" é provável ser ludibriado, pensando ler páginas platônicas. Isto ocorre não apenas por certa afinidade de pensamento.
O que temos falado até agora são elementos externos e descritivos. Eles mostram os sentidos que Platão e Aristóteles seguiram até chegarem a Bizâncio (se diretamente ou indiretamente) e o prestígio que eles sempre gozaram. Qual atitude, porém, os bizantinos adotaram diante deles, o que tais filósofos representaram para eles, e qual significado convinha a eles, ou novamente qual movimento filosófico foi causado por eles? Estes são os tópicos que queremos investigar, nos voltando a alguns dos mais importantes amigos bizantinos e admiradores dos dois grandes filósofos da antiguidade.

7) O estudo de Aristóteles - É necessário, porém, primeiro fornecer alguns dados que reconheçam o processo e a forma que o texto aristotélico foi tomado. Isto é fundamental para o melhor entendimento não apenas da filosofia bizantina, mas também da árabe e da ocidental.
Já no ano 50 A. C , isto é, no tempo em que o filósofo peripatético Andrônico de Rodes fez a primeira edição dos trabalhos de Aristóteles, os aristotélicos - a despeito de se voltarem para a investigação e o desenvolvimento das ciências da Natureza, seguindo o método de seu mestre, como já tinham feito outros aristotélicos (Teofrasto, Strabo) - começaram a se ocupar eles mesmos primariamente com a investigação do correto significado das palavras de Aristóteles. O mestre ergue-se diante deles como a única autoridade. Daquele tempo em diante, uma longa e sem fim linha de comentadores começa a constituir um único fenômeno na história da filosofia por conta de sua extensão. Tem-se também comentários a Platão, mas não com a mesma extensão. O renascimento do aristotelismo não se tornou ocasião para uma nova filosofia, como aconteceu com o caso do platonismo através de Plotino, mas deu surgimento a um estudo sistemático da obra aristotélica, unido proximamente ao seu texto.
Nós podemos então corretamente perguntar, por que existiram tantos comentadores de Aristóteles? Ora, a resposta é relativamente fácil. Foram produzidos comentários a textos que deixaram de ser imediatamente acessíveis, em outras palavras, acessíveis sem comentários, e que obviamente não deixaram de apresentar grande interesse. Novamente, produziu-se comentários a textos que não apresentavam sempre a clareza desejável. Este é frequentemente o caso de Aristóteles, que não fala com muita exatidão. Este é, de fato, o que um comentarista bizantino muito importante, o perspicaz Theodore Metochites (século 14), tem contra Aristóteles com veemência e nitidez sem, contudo, deixar de admirá-lo.
Não há outra razão particular que torne a produção de comentadores nos trabalhos de Aristóteles tão necessária. Os trabalhos de Platão são, em última análise, palavras de admoestação à filosofia. Eles são meios de conduzir a alma a criar uma atmosfera filosófica, que se possa sentir a qualquer momento, ou eles convidam à sua participação ativa, ou chamam a abrir os horizontes que constantemente aparecem diante de nós. São trabalhos endereçados a treinar os olhos ou a amadurecer a mente. Eles pressupõe certa preparação sem a qual não são produtivos. Em outras palavras, os trabalhos de Platão não são destinados a fornecer elementos filosóficos ou base de conteúdo ou método. A dialética platônica é muito mais do que um método, porque ela representa uma operação intelectual elevada de acordo com a qual a mente, a razão, visualiza suas questões de modo a remover antíteses, ou a reconciliar antinomias.
Pelo contrário, os trabalhos de Aristóteles, com sua sistemática, seu procedimento didático e metódico, são muito mais apropriados enquanto livros texto, preciosos pela introdução e ensinamento de filosofia. Assim, para os primeiros séculos depois de Cristo, eles se tornaram textos necessários, nas escolas filosóficas, em estilo de livros texto, par excellence. Esta é a razão da necessidade da produção de comentadores da obra aristotélica ter se tornado tão grande.

8) Os comentários aos trabalhos de Aristóteles e seu valor - Outra questão para as quais nós devemos nos voltar é se este laborioso trabalho dos comentadores apresenta qualquer interesse especial para a História da Filosofia. Nossa resposta, sem qualquer hesitação, seria afirmativa. Em primeiro lugar, os trabalhos deles estabeleceram certas maneiras de apresentar problemas, ou de classificar ideias que são ainda difundidas em toda a Filosofia Contemporânea. Não se trata aqui simplesmente de comentários relacionando dados linguísticos, mas a uma interpretação filosófica de um texto dado. Este tipo de trabalho sempre traz em seu interior um elemento de criatividade. O comentador que tenta por uma série de argumentos compreender o correto significado do texto chega frequentemente, em reconhecimento ao mesmo conteúdo, à conclusões idênticas a de seus predecessores. Isto acontece porque interpretação não é uma tarefa matemática, mas um procedimento que exige a participação do intérprete, ainda que se possa querer objetiva. Por esta razão, os comentários sobre Aristóteles apresentam um duplo interesse para nós hoje. Antes de tudo, eles nos ajudam em muitas ocasiões entender o texto, e em seguida eles nos apresentam um novo Aristóteles, alguém que é fruto de seu próprio construto e que em muitos e importantes pontos é diferente do Aristóteles real, já que ele representa o Aristóteles de suas próprias filosofias.
Certos fatos históricos nos mostrarão em melhor sentido o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o ensinamento universitário dos textos aristotélicos resultou na imposição das perspectivas do estagirita acerca do método, na medida em que este é o contorno de sua produção racional, seja qual for o tipo de investigação, se científica, filosófica ou teológica. De fato, na era bizantina, esta metodologia, que passou pelo nome de dialética, chegou a ser idêntica à filosofia. Tal visão tem sua própria profundidade. Isto mostra que os bizantinos não estavam procurando descobrir a essência das coisas na base de um ensinamento filosófico (esta essência foi dada a eles pelos ensinamentos cristãos), mas simplesmente desejavam métodos ou meios técnicos de modo a conseguir formular sua própria essência. É a filosofia vista deste ângulo que se torna serva da Teologia.
Há outro fato histórico que é igualmente importante. Os comentários mais antigos que possuímos são aqueles de Alexandre de Afrodísia [(final do século II D. C) --> W. D. Ross, Aristotle's Metaphysics, vols. 1-2, Clarendon Press, Oxford, 1970]. Eles relatam a Metafísica de Aristóteles e principalmente outras produções que têm a ver com lógica. Um dos problemas mais difíceis da interpretação de Aristóteles foi como ele entendeu as noções de 'mente' e 'percepção'. A resposta que Alexandre de Afrodísia dá mostra muito claramente como, conforme dito previamente, interpretação é também uma nova criação. Há quatro operações da mente que são distinguidas por Aristóteles por seu intérprete. Três delas correspondem a certas faculdades da alma, mas a quarta delas era pura atividade, a percepção da percepção (νοησις  νοήσεως), isto é, o Deus de Aristóteles. Alexandre, deste modo, chega à conclusão que é Deus quem coloca em movimento nossa atividade de percepção. Conhecimento não é "uma visão em Deus" (όρασις  εν  τω  θεώ), uma edificação da mente para Deus a fim de se ver as coisas que existem em Deus (a visão platônica ou neoplatônica), mas uma visão através de Deus (δια  τού  θεου). Aristóteles naturalmente não diz tais coisas atribuídas ao seu intérprete, que deste modo cria um novo Aristóteles capaz de satisfazer a ansiedade particular da época de Alexandre. Durante este mesmo período, os neoplatônicos dão a Platão um novo caráter, primordialmente teológico. Alexandre de Afrodísia faz exatamente a mesma coisa com Aristóteles. Ele estuda a natureza do conhecimento intelectual e de seu objeto, e o traz à teologia, ao invés de fazer como os comentadores mais antigos, para a ciência. Em linhas gerais foi esta a guinada do pensamento para Deus naquele tempo.

9) O desenvolvimento histórico dos comentadores de Aristóteles --> Faremos agora um breve relato da história dos estudos aristotélicos. tentaremos, de fato, dar uma diagrama geral desta história da Filosofia no tempo da Renascença. Outro comentador importante de Aristóteles, além de Afrodisias, foi, por outro lado, Porfírio, discípulo de Plotino. Seu livro Introdução ao Estudo das Categorias (είσαγωγή) , manteve-se como um importante texto tanto para o Ocidente quanto para o Oriente. A dialética dos Bizantinos derivou principalmente deste trabalho. Tivemos tanto Themistios e finalmente Simplicius entre seus comentadores principais. Estes três comentadores foram todos neoplatônicos e, inclusive, nos ofereceram um Aristóteles colorido com tonalidades neoplatônicas.
Do século quinto em diante, os textos de Aristóteles e seus comentários começaram a ser traduzidos para a língua Síria. A Síria tinha naquele tempo centros espirituais significativos como a Escola de Edessa e alguns mosteiros famosos. Mais tarde, os mesmos textos foram traduzidos para a língua árabe. No início do nono século um califa erudito de Bagdá, como Mamum e Harun al Rashid, estabeleceram em suas capitais um especial serviço de tradução. Assim, lá pelo início do século nono, os árabes tinham a sua própria linguagem de Aristóteles além de sua Política e de todos os seus comentários, que nós mencionamos, bem como outros mais recentes de Philoponos.
Um árabe podia também ter em sua biblioteca, ao mesmo tempo o Timeu  de Platão, a República e o Sofista e da medicina Grega os trabalhos de Galeno e dos astrônomos gregos o Al Magesta , o grande trabalho de Ptolomeu (a composição astronômica) e alguns outros trabalhos. Aparte isso, há também alguns textos bizantinos muito importantes como os trabalhos de Philoponos e de João Damasceno.
Estas traduções constituem um evento histórico muito importante. Eles claramente mostram para nós os primeiros materiais em que uma civilização inteira foi fundada e formada, a saber a civilização árabe, incluindo sua ciência e filosofia e mesmo suas artes. Os árabes exibiram, ao mesmo tempo, uma grande sede de aprendizagem. Sua sede foi saciada com os autores Gregos e Bizantinos. Mencionarei aqui uma anedota muito eloquente, ainda que ela não seja diretamente relevante para nosso assunto específico.

10) Os árabes e Bizâncio- Durante o nono século, quando Teófilo (o Iconomach) foi o Imperador de Bizâncio (829-842), os sábios homens de Bagdá concluíram em um de seus encontros que era impossível para eles resolver um certo teorema de geometria. Então, um bizantino que se encontrava próximo apresentou-se e disse que se eles permitissem a ele, ele poderia conseguir uma solução. Quando a permissão foi dada, de fato, ele conseguiu a solução deste teorema afirmando ainda que poderia conseguir ainda soluções de outros teoremas ainda mais difíceis. “Onde você aprendeu estas coisas?”, perguntaram-lhe.   Ele então disse ser discípulo de um sábio matemático de Bizâncio chamado Leo. Então, Califa Mamun enviou um convite a Leo para ir a Bagdá e ensinar matemática. “Se vieres” , ele lhe escreveu, ‘toda a raça dos Sarracenos se prostrará diante de vós e vós ganhareis riquezas e presentes que nem mesmo os humanos gozaram”. Teófilo não deu a Leo permissão de ir. De preferência, ele nomeou-o professor da Alta Escola de Constantinopla. Mamun continuou insistindo e escreveu o assunto ao próprio imperador, deixando a clara impressão de que ele reconheceria a condescendência do imperador como indicação de um favor, e lhe prometeu em retorno estabelecer uma paz contínua e enviar-lhe dois mil quilos de ouro. Teófilo novamente recusou. Deve-se levar em consideração os eventos amargos e sangrentos envolvendo guerras entre os árabes e os bizantinos e a competição destas duas raças para compreendermos a atitude de Teófilo. Esta anedota não mostra apenas a sede dos árabes por conhecimento, mas também o brilho de Bizâncio e um de seus melhores momentos.

11) Como os árabes viam Aristóteles—Veremos agora como os árabes viam Aristóteles. Em torno de 840 d. C. uma seleção de textos das Eneadas de Plotino foi traduzida ao árabe com o título Teologia de Aristóteles! Na introdução desta seleção, a visão que foi defendida era de que as quatro hipóstases de Plotino (o Uno, o Nous, a alma e a matéria) correspondiam a quatro causas de Aristóteles (final, aquela do movimento, material e aquela que cria). Ao mesmo tempo, outro  pseudo-aristotélico trabalho é traduzido como se fosse aristotélico, contendo extratos dos elementos da teologia de Proclus (quinto século). Assim, a filosofia árabe na medida em que segue os Gregos, enquanto esteve interessada em Aristóteles, não o seguiu diretamente e sim através de textos neoplatônicos! Isto, de fato, é um estranho agrupamento destas duas instâncias filosóficas; por um lado, aquela de Aristóteles, cuja mente racionalista e empirista usa a orientação lógica e positiva do pensamento e por outro lado aquela do Neoplatonismo, que se apresenta como uma mitologia dos poderes espirituais nos quais todo o universo parece estar mergulhado e que pode apenas percebê-lo como um insight. Há, porém, uma característica do espírito árabe de ser capaz de facilmente mover-se da tese espiritual para a antítese, em outras palavras, para adaptar-se e ser adaptado. Ela apresenta uma curiosa forma de sincretismo. Deste estranho casamento do aristotelismo e do neoplatonismo, a filosofia árabe surgiu, em muitos dos seus pontos, como um comentário e nova interpretação de Aristóteles.

12) A Introdução de Aristóteles ao Ocidente- Adicionaremos aqui que os Ocidentais começaram a se familiarizar com Aristóteles do século 12 em diante (isto é, com textos, comentários e interpretações  aristotélicos) quase ao mesmo tempo que os árabes da Espanha e de Constantinopla. Em 1210, a Metafísica de Aristóteles foi lida em Paris, tendo sido comprada lá de Constantinopla e traduzida ao Latim. Neste momento o primeiro grupo de Helenistas formado no Ocidente foi formado, o qual traduziu quase exclusivamente os trabalhos de Aristóteles em um sentido literal e quase incompreensível. De seu interesse pelas obras de Platão, traduziram o Fédon e o Ménon. Nós podemos entender o imenso significado desta peregrinação e transplantação de Aristóteles da Grécia para Bizâncio e deles para os árabes e destes dois últimos para o Ocidente.
Já que chegamos ao Ocidente, devemos parar aqui por um momento. Quando Aristóteles bateu em suas portas, os ocidentais, que  estavam a pouco tempo sedentos por conhecimento e sabedoria, já tinham desenvolvido algum movimento filosófico. Foi com esta sede que eles tomaram em suas mãos os primeiros textos de Aristóteles, sem, no entanto, estarem em posição de entendê-lo e julgá-lo. O que lhes faltava acima de tudo era um sentido histórico necessário, que lhes permitiria localizá-lo no contexto daquele tempo, e, consequentemente, entende-lo propriamente.  Então, foi dado a eles, como dissemos, em larga medida, uma forma corrompida. Aristóteles, surpreendeu os ocidentais do modo como ele negociou seus problemas, um modo que era completamente estranho ao seu próprio entendimento teológico e num sentido que os lançou em confusão. Tal foi a confusão ou rebuliço criado pelo estudo de Aristóteles que o próprio papa proibiu o estudo da Metafísica e o da Física, ou perguntou pelas edições que podiam ser removidas daqueles textos que pareciam estar em oposição aos dogmas da Igreja. Porém, uma vez que a autoridade de Aristóteles e a sede dos Ocidentais pelo conhecimento aumentou mais e mais, a Igreja ocidental deixou de condenar Aristóteles, e condenou somente aqueles que extraíssem dos textos de Aristóteles ensinamentos que contradissessem a fé cristã. Assim, uma longa história começou no Ocidente de cristianização de Aristóteles, que marcou-se pela busca de encontrar nele armas, não contra, mas em defesa da Cristandade. À altura deste movimento encontramos São Tomás de Aquino.
Aquino se comprometeu a demonstrar que enquanto a filosofia aristotélica era, de fato, autônoma e independente do dogma cristão, ela, de fato, concordava com ele.  Esta percepção conduziu-o a seguinte conclusão: o que é filosoficamente verdadeiro também o é para a Cristandade. Assim, então, a verdade filosófica e a Cristandade se alinham. É digno de nossos tempo observar que Aristóteles deu ao Ocidente a oportunidade para criar uma nova filosofia. Isto porque Aquino, ao interpretar Aristóteles deste modo, era, de fato, capaz de estabelecer um pensamento aristotélico, uma nova filosofia.
A partir de então, até o século 15, a autoridade de Aristóteles dominou o movimento filosófico ocidental, naquilo que é conhecido como “Escolasticismo”. Em seu trabalho os Ocidentais, como os árabes antes deles, foram significativamente assistidos pelos bizantinos, especialmente por João Damasceno, cujos primeiros trabalhos, no qual uma orientação análoga para a reconciliação de fé e razão é apresentada, foram estudados e usados acima de tudo por Tomás de Aquino. Tomás de Aquino foi também grandemente assistido pelos comentários de Philoponus sobre a obra de Aristóteles De Anima,  que constituiu um problema central para a sua própria síntese filosófica. A prova disto é que Tomás de Aquino incluiu em seu trabalho quase um comentário inteiro de Philoponus. O brilho filosófico de Bizâncio para o Ocidente não foi adequadamente estudado. Destas indicações, porém, e de outras que possuímos, parece claro que este brilho foi muito significativo.
Não é estranho para a origem de nossa questão ter falado sobre os árabes e os ocidentais. O que foi dito no primeiro exemplo indicou o transplante do espírito grego e bizantino para a Arábia, onde uma nova interpretação de Aristóteles foi desenvolvida. Então, mais tarde, nós mostramos que tipo de atmosfera foi criada no Ocidente com o quase exclusivo uso de Aristóteles, que nos ajudou a apreciar tanto quanto deveríamos a última grande contribuição espiritual de Bizâncio para o Ocidente;  eu quero dizer, obviamente, do movimento que foi representado por Plethon e Bessarion (século XV) sobre o qual iremos falar mais adiante.